Meus
olhos se abrem lentamente. Um bocejo escapa da minha boca e meu corpo todo
treme. Minha visão ainda está embaçada e não consigo distinguir bem as formas
ao meu redor. Estava me preparando para voltar a dormir quando sinto meu
estômago vibrar de fome e decido agir. Levanto bem devagar e espreguiço. Meus
dedos colados se separam e se preparam para me levar à comida e meu nariz fica
a espera de qualquer cheiro delicioso. Ando vagarosamente, me desviando dos
diversos obstáculos colocados a minha frente e ativando meus ouvidos para
captarem qualquer sinal de perigo. O trajeto corre da melhor maneira possível e
chego enfim ao meu destino. Chego cheio de esperança para perceber que onde
jazia comida uma vez agora não tem nada mais que farelos. Todo o meu esforço
havia sido em vão. Agora só me resta esperar que percebam esta calamidade e
venham reparar o erro. Sento-me delicadamente e passo a observar o familiar
ambiente ao meu redor. Por que eles insistem em ter coisas tão estranhas e
grandes? E algumas destas coisas estranhas me são proibidas. Não posso nem
chegar perto que eles veem me suspendendo no ar e colocando uma barreira entre
mim e o curioso objeto. Enquanto estou sentado pensando o animal chega. Chega
babando, com aquele grande nariz molhado e todo desajeitado. Não compreendo a
mania de cheirar todas as coisas e ficar com aquela língua grande e esquisita
de fora. Não tem modos. Faz suas necessidades em qualquer lugar, exalando por
onde passa um odor que incomoda violentamente meu perfeito sistema
respiratório. E ele ainda insiste em tentar contato comigo, chegando perto,
tentando me lamber e me morder e achando que me misturarei com sua raça.
Inocente. Não sou um dos que ele fica correndo atrás, balançando aquele rabo
dele. Ingênuo a ponto de sair correndo atrás de uma bola e não perceber que
estão jogando para ele e rindo de sua atitude.
Ir
atrás de uma bola, correr atrás do rabo, é com este animal que tenho que viver.
E lá está ele depositando resíduos novamente nas plantas da casa. É aí que
escuto o que passei a chamar de grito histérico. A mulher vem correndo emitindo
este som de sua enorme boca. Gritando com o animal e acertando ele com uma
daquelas folhas cheias de letras que eu vejo o homem levar embaixo do braço
quando entra naquele recinto que também não tem um cheiro tão agradável. Ela
bate no animal e mesmo assim ele ainda vai atrás dela. O homem então chega
murmurando algo para ela e começam um diálogo.
São
criaturas curiosas. Falam extremamente alto, conversam encostando um no outro,
soltam grunhidos estranhos chamados de risadas, mostrando aqueles quadradinhos
que em tese deveriam ser brancos, seus corpos dando espasmos e a coloração de
seus rostos passando a um tom vermelho obrigando-os a inalarem bastante e
ficarem ofegantes. Me são estranhos porque uma hora estão assim, mas em questão
de poucos segundos mudam completamente e começam a vazar. Sim. Água escorre dos
olhos lavando o sorriso e transformando o rosto em algo com uma aparência
triste. O ambiente se transforma, tudo parece escurecer e a cena vira de cabeça
para baixo. O homem abaixa a mão, a
afasta do rosto da mulher e sai deixando-a em um estado deplorável. Ele passa
por mim lançando um olhar ameaçador, como se eu fosse algum tipo de testemunha
do ocorrido. Ele não se aproximando de mim daquela maneira não dou a mínima
para como ele olha ou deixa de olhar.
Poucos
segundos depois a mulher retorna e para na minha frente. Os pelos de sua cabeça
estão agora bagunçados e seu rosto está todo molhado. Uma marca se forma de um
lado do seu rosto, bem ao lado de suas narinas. Não consigo ler a confusão em
seus olhos e por isso me aproximo bem devagar, dando a ela o carinho que ela
precisa. Deixo ela me pegar em seu colo, como o faz desde que nasci, me
aconchegando nos seus braços. Ela me balança e murmura sons inaudíveis à minha
audição e emito meus próprios sons de consolação. A água de seus olhos cai em
mim me molhando todo e me contorço para desvencilhar-me de seus braços. Olho
para onde a comida fica e ela então percebe o que me aflige. A fome. Ela me
alimenta enfim e sai andando. Finalmente pronto para voltar ao meu estado inicial
retorno ao meu ponto de origem, andando e seguindo os passos da mulher, mostrando
a ela que estou aqui e a acompanhando até o ponto em que ela segue seu caminho
sozinha. Chego vagarosamente, um bocejo já se formando no interior, deixando
para trás aquela mulher chorosa. Deito-me novamente, pensando que fui útil a
ela, da mesma forma que ela foi a mim. Nós dois demos ao outro o que
precisávamos e tenho uma sensação de missão cumprida.
O
sono me abate e fecho os olhos lentamente, me deixando perder nos pensamentos
do carinho da mulher, no fato de não ter nenhuma obrigação ou responsabilidade,
de ter amor, comida, afeto e uma cama quentinha sempre a minha espera. De ter
um lar. Minha almofada me aquece e penso nos meus irmãos na rua, que não tem
onde dormir e nem comer. Agradeço mentalmente minha condição e adormeço,
ronronando.
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